quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Amamos porque nos é conveniente amar...

Amamos porque nos é conveniente amar. A vida enche-nos dessa promessa de felicidade eterna e partimos na busca infrutífera de alguém que traga o que nos falta, alguém que nos complete e leve para sempre e para longe toda a infelicidade.
Amamos porque nos dizem que a vida sem amar não faz sentido, que a dois tudo é melhor e nada vale a pena se não for partilhado. Amamos porque sim.
Amamos porque esperamos sempre mais, porque nos falta sempre algo, porque temos esta sede eterna de não estarmos sozinhos.
E ao amarmos, o que acontece? O paraíso ao princípio, tudo o que sempre nos disseram que seria e muito mais ainda.
E depois? Depois tudo muda. A vida acontece e, desengane-se quem achar que ela pode não acontecer. A vida acontece sempre. O paraíso fica pálido e o som dos riachos que nos embalava é agora um irritante e perturbador barulho que teima em ser a banda sonora dos nossos dias. As aves já não cruzam os céus. Nem o sol já aparece.
Os dias tornam-se anos infindáveis. 
Porque amamos? Pelo paraíso. Por mais breve que seja, existe, e faz valer a pena buscá-lo.
Amamos porque sim e por mais vezes que este paraíso empalideça, por mais vezes que os riachos se tornem em irritantes barulhos de fundo, voltamos sempre a querer amar. Porque nos disseram que o pôr do sol só vale a pena a dois. Como se o sol se importasse ou fosse menos belo por isso...
Amamos por amar, apenas isso.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Sonho

Sonho
que posso voar

as nuvens - são o teu corpo
a chuva -  o suor
o vento - o teu respirar

Sonho
que sou o teu sol
e condenso-te nas estações do ano,

quando te amo...

Plano
inclinado sobre ti.
E deslizo abraçando o teu sorriso
na tempestade e na bonança,
na inquietação e na esperança...

Sonho
que não és mais um sonho
e do teu sorriso nascem prados verdes salpicados de papoilas
onde corro e me encontro.

E és nuvem e chuva e vento e prados e papoilas e sou o sol que te beija
e és dia e horas e segundos
e mundos
e universos
e cascatas do paraíso

e o sonho termina e a saudade esmaga!

Abro as asas... e vôo
e vou
e sou
pássaro rumo ao infinito.


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Noite vazia

A noite está negra
do luar ausente.
O mar sussurra.

O ser dormente
rema
ruma ao vazio.

O urro da escuridão
ninguém o sente
de tantas vezes que a vela ardeu
sem chama nem pavio.

domingo, 23 de junho de 2013

Alentejo


O Alentejo
é lento,
tem alento
e tem o rio Tejo
eterno
como o desejo.

Tem o além
e as searas douradas
e o A que é o início de algo
e metade do nada.

Tem o al,
do dialeto que sabe a deserto
e as terras lavradas sob o sol do inferno
ou o prolongado inverno.

O Alentejo tem o povo que canta
sem outra música se não a que lhe soa na alma
e que assobia no vento
a tarde quente
na tempestade calma.

domingo, 14 de abril de 2013

A Cabana (1)

  A madeira rangia como um lamento da violência do vento que a fustigava ano após ano, salpicando-a de água salgada, chicoteando-a de areia como se o simples facto de ali estar justificasse essa eterna punição.
  A verdade é que nem os mais velhos se lembravam de quem tinha construído esta simples cabana de quatro paredes, duas janelas e uma porta rachada de alto a baixo, vulnerável a tudo mas trancada a duas voltas como um coração partido.
  Do alto da duna mais bela, era a rainha de toda a praia. Não pela sua arquitectura rebuscada, ou pelas suas cores atraentes, mas simplesmente por sempre ali ter estado e com esse irresistível charme do eterno, resplandecia aos olhos dos que passeavam ao fim do dia pelo areal.
  O sol beijava-a toda a tarde e era durante esse tempo, de sol alto e céu azul sereno, que as gentes juravam ouvir gemidos através das frestas que o tempo fora criando nas tábuas que, pregadas umas às outras suportavam toda a estrutura de tinta azul enrugada pelos sucessivos Verões.
  Ninguém se atrevia a aproximar, mas o que uns juravam ser gritos de dor e sofrimento, de almas penadas presas a este mundo ou até de um poço que se dizia estar no interior e levava directo ao inferno, outros diziam que os gemidos eram de prazer e que dentro da decrépita cabana, estavam as almas de dois amantes que, proibidos de explanar o seu amor, se tinham enclausurado em tempos perdidos na memória e, com o sol como testemunha, selaram o seu amor eterno ao tirarem as suas vidas em simultâneo.
  Porque só acontecia à tarde, só quando o sol estava quente e alto e o Verão no seu auge, ninguém sabia ou se atrevia a opinar, apenas sabiam que a cabana da saudade, como lhe chamava o povo, era um mistério dos antigos e que manter a distância era algo que se passava de pai para filho e a que todos obedeciam religiosamente.

(continua eventualmente)

terça-feira, 5 de março de 2013

Dias

 O vento assobia lá fora em mais uma noite de chuva. Não me incomodam, nem um, nem o outro, tão pouco   a suposta solidão que é viver sozinho.
 Quando fecho a porta, após mais um dia de trabalho, dou duas voltas à tranca e, após cumprimentar os gatos, que me recebem sempre em uníssono, dou também duas voltas à tranca da alma e fecho-me para o mundo, ou melhor, para o mundo fora de mim, o mundo que me vê. 
 Por detrás da minha porta da rua, sou o espaço que existe das paredes até às janelas e pelas janelas posso voar. Tenho o mar à minha frente e o céu que raramente se esconde e, sobretudo, não temo a chuva nem o vento. Eles são parte de mim, deste meu eu interior que se projecta nos outros como... bem... como um mar sereno, uma nuvem imóvel num céu azul quase idílico. Nada mais errado...
Quando os gatos finalmente serenam, fica o silêncio dos quadros nas paredes e dos livros ainda por arrumar nas estantes, só cortado pela televisão quando se justifica abstrair-me de mim próprio até encontrar de novo o equilíbrio. Quando o consigo volto ao silêncio da sala, do quarto, da cozinha. Não falo, nem com os gatos e sabe-me tão bem poder não falar.
 Questiono-me se conseguirei ocultar para sempre este mar e este vento que remoinham dentro de mim. Se serei eternamente capaz de mostrar placidez quando na realidade navego na orla da tempestade... Se haverá motivo para os libertar e, sobretudo, o que aconteceria se o fizesse... Mas não perco muito tempo com isso, são apenas pensamentos e, apesar do medo de tantas vezes já não saber se sou como sou ou se sou como sempre quis mostrar ser, despeço-me de gatos e, já no quarto, de luz apagada, deixo-me embalar pela música que oiço sempre antes de adormecer...